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Os abusos sexuais dos "bons"


Artigo de 2015 em 'Que no te la cuenten'

Faz apenas alguns dias que o Papa Francisco levantou mais uma vez a questão do abuso sexual por parte dos padres. Ele estava certo em nos lembrar disso; concreto e firme. Ainda hoje, na Infocatolica, temos esta declaração; pois a verdade é a verdade.


Ao mesmo tempo e durante alguns meses, tivemos a oportunidade de ver alguns filmes sobre o assunto; nos referimos a "Perfeita obediência" (2014), onde é narrado o caso do padre Maciel, "O Caminho da Cruz" (2014), um filme alemão dedicado ao abuso de consciência por um grupo católico e, finalmente, "A Floresta de Karadima" (2015), onde são analisadas as acusações contra o padre chileno de mesmo nome.

Os três filmes narram - em bases fictícias ou reais - casos que podem ter ocorrido em certas organizações católicas "conservadoras" ou "de boa doutrina".

Nossa intenção aqui não é fazer uma crítica cinematográfica[1] nem atacar o que é bom em alguns desses grupos, mas simplesmente advertir e refletir sobre a razão pela qual esses casos de má prática podem ocorrer mesmo em seus membros mais proeminentes (fundadores ou superiores "ortodoxos").

E não há necessidade de citar nomes; poderia ser o caso do P. Fulano, Mengano ou Ciclano, porque não se trata de uma pessoa, mas de um padrão; um padrão de comportamento que aqui batizaremos como "o guru católico", ou seja, o líder que, por sua maneira de ser, "arrasta" muitas almas para o catolicismo militante e comprometido.

Sabemos que os gurús existem em toda parte: na política, nos negócios, no âmbito militar, e também - portanto - na esfera eclesiástica. E são excelentes quando, usando os dons que o Senhor lhes deu, os usam para o propósito que Deus propôs, tentando fazer grandes obras e não buscando sua própria glória, mas a Daquele que realmente a merece: Deus.

Mas o caso do gurú católico é único, pois ele pode ser uma espada de dois gumes. Por quê? Porque embora suas conquistas sejam aplaudidas, quando este cometa um grande erro - mesmo no caso de falhas objetivamente graves - se não retifica sua intenção, a "estrutura" criada por ele pode fazer, como diz o ditado, ouvidos de mercador às críticas e denúncias, vendo apenas calúnias e conspirações que só procuram destruir a "obra".

É exatamente isso o que aconteceu - para dar apenas um exemplo - com os casos dos PP. Maciel e Karadima:

- "Eles nos atacam porque temos muitas vocações".

- "Eles nos atacam porque somos bons e porque odeiam a ortodoxia" - disseram eles.

E isto foi dito não só pelos acusados, mas também pelo núcleo mais íntimo de seus colaboradores. Em outras palavras, tudo se resume a uma refutação ad hominem ("contra o homem") - dizendo coisas como: "Veja quem está atacando e veja se é verdade"! , ou seja, ao envés de analizar os fatos atacam às pessoas.

É que a estrutura ideológica criada pelo guru muitas vezes impede que se veja a realidade, caindo assim em um sistema de auto-confirmação ideológica onde "a estrutura de interpretação da realidade" tenta de antemão prevenir as respostas mesmo quando a "teoria" e o "sistema" podem falhar.

Tomemos um exemplo de um refrão italiano que diz: "se nos è vero, é ben trovato", se não for verdade, está bem parecido. No filme sobre o padre chileno, um jovem "do rim", encantado pelo trabalho e pela pessoa do guru, torna-se um de seus seguidores mais íntimos. Uma vez dentro, através de diversos e lentos processos de manipulação, que vão da dependência espiritual e intelectual à dependência afetiva, ele acaba caindo no "círculo" daqueles que lhe são mais próximos e, finalmente, abusado... Não é, a princípio, um abuso grotesco; é lento; quase imperceptível, mas suficiente para que a vítima se sinta presa de um segredo; um segredo que só ele e seu agressor conhecem. É o seguinte: "algo já aconteceu entre nós"; não é apenas uma questão sexual; é um caso de poder: "você sabe que eu sei o que fizemos". E esta é a parte mais difícil: a vítima começa a se sentir culpada até mesmo pelo que aconteceu. "Como isso aconteceu? Ele é um santo! - pensa o protagonista deste filme.

A vítima "se sente culpada"; ela não ousa se manifestar. Por um lado, porque ele pensa que não acreditarão nela e ela mesma "se auto-convence" de que o que experimentou não foi real.

A vitima se sente "ingrata": viveu ao lado do guru, desfrutou de seus benefícios e agora... vai traí-lo? Normalmente não é fácil distinguir entre obsessão (que é um vício) e lealdade (que é uma virtude), ainda menos quando a manipulação é feita por pessoas maiores.

Além disso, tenta-se convencer à pessoa que está sendo assediada que, se essas imoralidades fossem conhecidas por outras, elas seriam injustamente "difamadas" e assim prejudicariam o bem comum, entendido quantitativamente e Hegelianamente: "haveria menos vocações, menos escolas, menos obras de caridade! que se alegrariam os progressivas disso! esquecendo que o bem comum é o conjunto de condições que permitem ao homem alcançar uma vida virtuosa (neste caso, a vida virtuosa da alma consagrada a Deus nesta instituição).

Mas o guru não age sozinho: no "círculo" dos colaboradores do guru, há todo tipo de pessoas: desde os obsequiosos que, sob o pretexto da obediência, repetem uma "história oficial" a alguns que, sob o pretexto do bem, optam por silenciar - ou simplesmente negam e fazem negar - a realidade. É ali, em tais grupos onde a obediência ainda significa algo, que se pode abusar dela, pedindo silêncio através dos oficiais intermediários e dizendo as palavras do filosofo Voltaire a seus camaradas: "Ao menos a crítica, ao menos a resposta, mesmo a mais moderada e educada, deve-se gritar 'calúnia, insulto, sátira atroz', tratando os adversários como patifes, fugitivos da prisão, hipócritas, loucos".

O guru, por sua vez, sempre nega os fatos; sua consciência se torna cada vez mais frouxa; ele acha que está "além do bem e do mal" e não considera o seus atos como algo grave; na realidade, é só uma bobeira. Quando o que que faz não passa a atos mais graves suas indecências serão sempre "sinais de afeto", somente demonstrações de "afeto", e assim por diante.

Como se sai ou se escapa destes círculos? A vítima só consegue escapar com grande esforço moral e psicológico. E somente graças a Deus, ou ele mesmo faz o que Santo Inácio aconselha em uma das famosas regras de discernimento: falar. Ele pode saber teoricamente, mas ainda não o pôs em prática:

"(O inimigo do homem) torna-se como um homem vaidoso apaixonado em querer ser secreto e desconhecido. Pois assim como o homem vaidoso, que, falando mal, requer uma filha de um bom pai ou uma esposa de um bom marido, quer que suas palavras e ações sejam secretas; e o contrário o desagrada muito, quando a filha para o pai ou a esposa para o marido descobre suas palavras vãs e intenções depravadas, pois deduz facilmente que não será capaz de partir com a impressão iniciada: Da mesma forma, quando o inimigo da natureza humana traz suas artimanhas e persuasões à alma justa, ele quer e deseja que elas sejam recebidas e mantidas em segredo; mas quando as descobre para seu bom confessor, ou para outra pessoa espiritual que conhece seus enganos e malícia, isso pesa sobre ele; porque ele acredita que não poderá partir com sua malícia iniciada, quando seus manifestos enganos forem descobertos" (Livro dos Exercícios Espirituais, nº 326).

No início era o Lógos, a Palavra; e aqui também. É necessário falar.

Para aqueles que o consideram útil, e com a intenção de descer ao mercado, como disse Platão, aqui estão algumas dicas que podem ajudar a descobrir casos de guruismo católico (ou pseudo-católico):

- A manipulação das consciências: o guru e seus seguidores mais próximos evitam consultar qualquer pessoa fora do "grupo" porque "ele não vai entender". "Ele não é um de nós"... E isto pode acontecer mesmo com um ex-diretor espiritual sábio "fora" do trabalho. A alma só deve se abrir com alguém de "dentro".

- Deformação da virtude da obediência: mesmo se o olho do indivíduo vê "preto", se o superior diz "branco", é porque ele é "branco". Alguns poderiam dizer que ao aderir a este tipo de agrupamento se faz um "pacto de aliança" com Deus e com os irmãos, pelo qual se renuncia, de certa forma e antecipadamente, às próprias visões e avaliações "em relação aos contingentes individuais quando não concordam com os do superior", mesmo quando são "melhores que os do superior" (exatamente o oposto do que diz o grande Pe Castellani a este respeito).

- Há uma clara desordem no desejo de ser "aceito" pelo grupo: é preciso "ser apreciado, não tolerado"; quem quer que esteja no trabalho, não quer ser relegado ou ser tido como: "está com mal espíritu"..., etc. 

E estas são apenas alguns tips.

Resta, finalmente, ver como nesses casos, ou seja, em casos de grupos católicos de doutrina aparentemente boa, podem ocorrer casos de negligência; como isso pode acontecer em movimentos onde muitos de seus membros buscam a santidade com radicalismo e a exaltação da Igreja. Em outras palavras, um grupo fundado por um gurú abusivo pode dar frutos apostólicos e de santidade?

Acreditamos que pode; e isto, em parte, graças a ele, mas também apesar dele.

Se acreditamos que pelo fruto conhecemos a árvore, sabemos que Deus pode usar elementos deficientes para fazer suas obras. Se ele o fez com Sansão, que com um único maxilar de burro matou milhares de filisteus, quanto mais ele poderia fazer com um burro inteiro? Pois a obra de Deus é uma coisa e o guru católico é outra. É por isso que ninguém deve ser desencorajado em tais circunstâncias, mas pelo contrário: deve-se comprometer-se ainda mais consistente e radicalmente com a causa de Deus e do Evangelho.

Concluamos então com uma pergunta e duas respostas: por que Deus escolheu tais pessoas e por que a Igreja aprovou suas instituições? Parece ser um mistério incontestável. No entanto, há duas coisas que podem ser consideradas:

A primeira é que Deus está determinado a fazer o bem mesmo com elementos deficientes: não pode ser de outra forma, porque em virtude de nossa natureza caída ele deve operar com nossas excelências, bem como com nossa imundície. Desta forma, além disso, torna-se ainda mais claro que as obras apostólicas não vêm da capacidade e do engenho dos homens, mas de si mesmo. Foi o que Jesus Cristo fez quando escolheu um número de pescadores e homens simples dentre seus apóstolos.

A segunda é que a Igreja, ao aprovar uma obra (a Legião, a "Pia União dos Sacerdotes", etc.), não eleva seus fundadores aos altares, mas simplesmente declara que o modo de vida regulado em suas regras e constituições é compatível com o Evangelho. A Igreja aprova o trabalho, não o operador.

Mas por que permitiria que os "progressistas" tirassem proveito disso para atacar as boas obras de grupos aparentemente ortodoxos? A pergunta é válida; e é tão válida quanto perguntar por que ele permite o mal. A resposta é sem dúvida um mistério; sabemos, entretanto, que Deus respeita a liberdade do homem (mesmo a dos que fazem o mal) porque, sem ela, não teríamos mérito em fazer o bem, nem culpa em fazer o mal. O que ele não pode deixar de "permitir", em sua infinita justiça, é a inexorabilidade da recompensa e da punição, nem pode deixar de derramar sua infinita misericórdia sobre as vítimas.

E ele nos permitirá não apenas uma purificação passiva da Fé, como São João da Cruz a chamou, mas também uma prevenção e advertência contra este tipo de pessoas.

Por mais amarga que seja a verdade, tenho que jogá-la da boca para fora.

De gurús católicos, progressistas ou ortodoxos, livrai-nos Senhor!!.


Que no te la cuenten...


P. Javier Olivera Ravasi

 



[1] Dos três filmes, diremos apenas, em termos de avaliação crítica, que "A Via Sacra" nos pareceu ser o mais bem-sucedido, tanto em termos de conteúdo quanto de psicologia dos personagens. Os outros dois são bastante fracos e tendenciosos.

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